quinta-feira, 10 de junho de 2010

CARTA DE RESIGNAÇÃO


para Friducha e Artaúde


Meus senhores, o que vos escrevo escrevo a vós para que saibais como ceder à decrepitude torna-me indigno quanto à condição humana.

Vos escrevo, senhores, por saber que a areia do tempo traz consigo a morte e esta indecorosa senhora deixa, por onde passa, um rastro de cinza e pó.

Saibais que nada enegrece mais um peito que outrora se via florido, quanto tão enegrecida é a imagem que fez ele fenecer.

E assim, senhores, ver descolar-se a pele da carne que já não é mais tenra, assim como sentir o floral putrefato das gérberas e dos crisântemos que me enterneciam os olhos na mocidade da vida e ora jazem em coroas, não cansam de mostrar-me o quão, senhores, a ninguém e a nada me valoro.

A hediondez, senhores... a hediondez de ver-me a mim decrépito não é, no entanto, mais amena que a vileza de ver esfacelarem-se os que me rodeiam.

Não bastasse o gosto de sangue e fel do horário lúgubre, saibais, não cessam de acusar-me os inquisidores dos quais também sou partícipe, com tênue rudeza que quase faz-me crer ser falso.

Atentai! Mas não! É deveras sub-humano para que possais ouvir as sonatas avernais da ária que a cruz vermelha insiste em retinir-me aos tímpanos.

Será sempre, senhores, a cantiga que me nina e me desperta até que um dia possa eu unir-me aos míticos cancioneiros na fábula de onde do alto de minha perpétua palafita, tenha eu no rosto tatuado um epitáfio que consolará apenas os que quedaram, senhores... os que quedaram!


Nenhum comentário: