quinta-feira, 10 de junho de 2010

CARTA DE RESIGNAÇÃO


para Friducha e Artaúde


Meus senhores, o que vos escrevo escrevo a vós para que saibais como ceder à decrepitude torna-me indigno quanto à condição humana.

Vos escrevo, senhores, por saber que a areia do tempo traz consigo a morte e esta indecorosa senhora deixa, por onde passa, um rastro de cinza e pó.

Saibais que nada enegrece mais um peito que outrora se via florido, quanto tão enegrecida é a imagem que fez ele fenecer.

E assim, senhores, ver descolar-se a pele da carne que já não é mais tenra, assim como sentir o floral putrefato das gérberas e dos crisântemos que me enterneciam os olhos na mocidade da vida e ora jazem em coroas, não cansam de mostrar-me o quão, senhores, a ninguém e a nada me valoro.

A hediondez, senhores... a hediondez de ver-me a mim decrépito não é, no entanto, mais amena que a vileza de ver esfacelarem-se os que me rodeiam.

Não bastasse o gosto de sangue e fel do horário lúgubre, saibais, não cessam de acusar-me os inquisidores dos quais também sou partícipe, com tênue rudeza que quase faz-me crer ser falso.

Atentai! Mas não! É deveras sub-humano para que possais ouvir as sonatas avernais da ária que a cruz vermelha insiste em retinir-me aos tímpanos.

Será sempre, senhores, a cantiga que me nina e me desperta até que um dia possa eu unir-me aos míticos cancioneiros na fábula de onde do alto de minha perpétua palafita, tenha eu no rosto tatuado um epitáfio que consolará apenas os que quedaram, senhores... os que quedaram!


Prato e Faca - Cristina Buarque (1976)


Há alguns anos, curtidor do samba-relicário como sou, deparei-me com o disco 'Prato e Faca', da sambista Buarque, a caçula Cristina, uma incrível novidade vinda do passado!
Antes disso, recebi de presente um vinil da mocinha, onde ela cantava a Tatuagem do irmão.
Era gostoso e nostálgico...
Tem uma capa noir, com alguns lampejos de cadeiras austeras como aquele grave ambiente, que era imerso em sombras. Uma silhueta de mulher e um pequeno pedaço de vida verde é o que se vê pela janela ao fundo da imagem...
Deu, ao primeiro ouvir, uma grande vontade de sentar-me frente à vitrola e tomar um café (ou dois), o que já é bom e fitar aquela capa, mas parava por ali...
Acabado o disco, acabava com ele a áurea mística que o samba imprime na minha alma.
Ponto final!
Mas esse Prato e Faca, afortunadamente, subrepuja aquele outro.
Eu o ouço e a sede agora é de cerveja, de dança... de samba!
O desejo de realizar todas as concupiscências que o samba proporciona e inclinar-me inteiramente a ele sem temer sujar-me.
Ele é o retrato audível daquela música visual que é a capa supracitada!
Uma tristezura sambada, que atingia o peito e revitalizava a alegria.
O yin do yang...
É assim mesmo!
Prato e Faca tem, na mesma medida e ao mesmo tempo, a condenação do pecado do requebro da energia terrenal e telúrica e o purgar da voz frágil e limitada, porém doce (e em tempo, deliciosa) de Cristina, que eleva os sentidos.
O repertório é requintado: Paulinho da Viola - o bonitão elegante da incrível Portela, Manacéa, Dona Ivone Lara e quem dá as ordens: Heitor dos Prazeres, compositor dum samba conteúdo do 'Prato', de melodia soturna e chorosa, por que o samba é a tristeza que balança... não é assim?
Esse prato feito é um clássico do samba e pro meu peito, o melhor disco da cantora. Alimenta bem!
Espero sambar outros discos com a mesma qualidade deste genuíno.
E quanto esta porta-bandeira do samba-raiz meus ouvidos [re]clamam: Será que Cristina Volta?