segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Livro da Vida I

TIC... TAC... TIC... TAC... TIC... TAC… canta o reloginho verde no comecinho cinzento do sábado...
TIC... TAC... TIC... TAC... QUE HORAS SÃO? ESTÁ ESCURO AINDA! Torna a adormecer, ande... Depressa! Já o chiado falso de elepê vem despertar a vida numa tentativa de realidade poética e verde tal o tal relógio e qual um Paris bonito e de verde- cinza de Poulain...
TIC... TAC... TIC... TAC... (chega Amelie cantarolando por sobre o tal chiado charmoso. A música: Guilty) um olho se abre a fuçar o telefone em busca das horas enquanto o outro olho teima em queimar fechado, que nem taturana em contato com a pele. Resultado: Soneca (talvez uma desculpa pra ouvir a chieira de Tiersen dali a cinco ou oito minutos... nunca sei ao certo!).
TIC... TAC... TIC... TAC... Culpa e Guilty por não ter saltado de galope da cama... Mas oras! O encontro é aqui ao lado... Em quinze minutos estou lá... Viro de banda para levantar-me da forma correta e não zangar o ‘espinhaço’... Tenho um encontro com Lucianna Magri... Magri? Havia uma atriz com esse sobrenome, não havia? Lembro bem do rosto dela em algum momento clássico da tevê, sempre associado a alguma música de Ivan Lins... Claro! Não é ela que apareceu vendendo coco em água nos azulejos de Copacabana? Com mil diabos... Como se chama a tal infeliz? E afinal de contas, que manhã escura é essa? Agarro o filminho de Jeunet e penso em vê-lo de imediato... Claro! Esse é o dia que Deus faz para unir o meu amor ao de Amelie... Não é ela a mulher de verdade? Já disseram isso! Mas a minha é melhor: tem a sofisticação de um Paris bonito de cinza e verde de poulain... Mas espera! O sobrenome não era Magri? (e puf... à espera de Guilty novamente!)
Alguns pares de minutos mais tarde, tudo veio num flit de duas cores, dois sons e duas Magri... O que tem as Magri com o dia cinza e lindo que faz? Magri... magriiiii...
Magris... gris... Cinza... Gris... Tictactictac e lá vem o tal chiado novamente… passaram mais dez ou dezesseis minutos, eu nunca sei!

Aqueço água... Um punhadinho de mate e nada de açúcar... Nada, nada... A noite foi solitária e claro que a manhã, de modo igual... Vou me vestir enquanto o pipipi das micro-ondas vem dar-me o chá matinal... Pronto e pipipi... Tomo-o, olho pela janela... Faz bruma lá fora! O que esse dia tão absurdamente atípico reserva pra mim? Pronto... Falta algo... O que é? Claro! Falta calçar-me os pés com alguns calçados, oras... (fiquei bravo por que calçados, às vezes, são uma convenção tão tola! Os relógios também... e falando neles, lá vem o verdinho abraçar-me o pulso... tic tac tic tac).
A manhã parece mesmo lindamente escura e misteriosa... Que diabos me faz saltar da cama tão manhãzim e romper esse nevoeiro que não saiu do meu mate? Faroletas de bruma... Que dia tão atípico! Abro os vidros pra que toda aquela bruma salte pra dentro do carro... Ela e alguma música de rádio me acompanham até o local do encontro... Salto ligeiro do carro e trancafio o fiozinho de névoa que se perdeu lá dentro... Já volto, portanto não fuja!
Tenho ainda o tempo de uma soneca de telefone antes da tal reunião: um suco, uma volta e lá está a Magri... Ois, acolhidas e outro tempo de soneca enquanto se prepara o ambiente. Mas não havia muita gente lá... Comigo, quatro. Outros três tempos de Guilty e chegam dois, depois mais dois e de repente, somos quase dez (ou dezesseis, eu nunca sei direito!).
O trabalho começa: um trecho de filme francês sobre aquele moço dos registros: Freinet (que logo sugeriu um adjetivo: Freinético) em francês, naturalmente... Com legenda falha e espaçada... Mas isso torna as imagens o foco principal!
O corpo fala... A imagem fala: A IMPORTÂNCIA DA ESCRITA.
A importância do registro... Eu falo isso pros pimpolhotes maiores sempre que eles fazem algo que me enchem os olhos:
- Joãozinho, registra isso!
- Maricotinha, registra esse movimento... Ele é tão legal!
- Léo, registra essa cambalhota!
E logo eles repetem uma ou duas vezes para que o corpo registre o trabalho.
TIC TAC TIC TAC TIC TAC…
O fim das imagens de escrita importante… a roda (tão habituais com os meninos) de conversa... Os discursos, os desabafos e o insolente ‘tictac’ transfigura-se em ‘Tum Tum Tum’ assim que meus colegas tomam a palavra (mas que diabos! O que ocorre afinal?).
Logo o tum tum tum agrega umas imagens: as das crianças... e TUM TUM TUM!
O QUE? AH! MAS É ISSO, MEU SÃO COSME E MEU SÃO DAMIÃO?
Num rompante quero falar entre a brecha... Um mar de luz de impede e cedo lugar... (um leite com canela vem dar-me o consolo necessário ao furor do momento) o mar de luz não cala sua turba! (outro leitinho com canela a arrefecer o samba tocando bruto em meu peito e chega minha vez de falar... começo e T –U – M – T – U –M – T – U – M!!!!!!).
A essa altura, o senhor Leonardo já havia mandado um mail ao barbudo porteiro, e assim o gris deu lugar ao sol que veio unir-se tímido a nós outros. O sol se abre no momento em que meus olhos também: são eles, meus santinhos guris! São os gurizinhos que batem o samba em meu peito! São eles! São eles que vieram cantarolar os TICTACS que me despertaram e os TUNTUNTUNS que me irriquietaram ali, então!
Como o frenético afrancesado fez tuntuntuns em peito da Magri que não é atriz e de tantos outros que se uniram, mesmo com febre, em alguns casos, na manhã cinzenta e nebulosa...
Assim como os pirralhos fizeram tum no peito francês do Celestin, estão eles agora, aqui, fazendo de sua traquinice a minha premência.

Agora sei que suas zuadas vêm unir-se aos chiados de elepês, seus sorrisos vêm unir-se entre as delícias visuais em verde e cinza de Jeunet e o cheirinho de suas lancheiras recém-abertas ao cheirinho de chuva e bruma...

Foi duro admitir, mas tudo deles está agora entre as minhas coisas favoritas.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Mulato bamba



De todas as formas de alívio que pudesse sentir naquele momento em que, um incauto em fundos de garrafas, afunda-lhe o traseiro do carro sem misericórdia, o que de imediato surge-lhe à memória das papilas é o etéreo sabor de uma boa caninha.
"Das bravas!" Tanto quanto deveria ele se encontrar naquele momento do beijo grego entre o quadradinho cor de mel e o Chambord sangria.
‘ora porra!’ – exclamou um de cá, esforçado em fazer-se sereno durante o percalço.
Puxou um cigarro, abriu a porta projetando uma das pernas para fora, onde se avistava um excelente vinco no branco do linho: barra italiana. Coisa fina que se debruçava sobre o envernizado bicolor que calçava as meias vermelhas. Acendeu o tal pito e precipitou-se em direção ao prejudicador, que suava-se em bicas por baixo dos braços, encharcando as tergais que lhe deram a vestir logo pela manhã.
Parecia mais consternado com a sua atual torpeza que o mulato arroxeado, de quem lhe esculhambara a máquina: Bodejava, erguia e sacolejava as mãos para os ares, e então, deitava-as sobre a cabeça, na contemplação da tragédia automobilística que se lhe ocorrera não havia dois minutos. Pensava no que haveria de protelar em pagamento, para cobrir-lhe o prejuízo causado àquele bugre tão bem alinhado. ‘deve ser dado à macumba’ – pensou.
Olhou-lhe para a grossura dos punhos. Os mesmos que, seguramente e muito em breve e bem cerrados, afundar-lhe-iam as ventas e as têmporas, como ocorreu com os para-choques metálicos.
Chega o tal pilintra. Refuta-lhe a presença e parte direto à analise do dano. Coça o queixo, torce a pera. Debruça-se mais sobre o traseiro de sua propriedade e quebra o pescoço, o que lhe faz lançar um revesgueio ao infrator, que a essa altura dobra-se em cólicas, ao esperar o veredicto silencioso de seu algoz.
Este, que permenecera debruçado, agora apoia um dos pés nos restos de para-choques. Tira o lenço do bolço e abre-o. ‘Coisa fina’ - pensou o réu. Volta a dobrá-lo e põe-se a polir o grande estrago. ‘Eu pago!’, disse gaguejante o Outro coitado. Mas o Um pareceu não ouvir e, esmerado, colocava um tanto mais de força no polir do lenço.
Naquele movimento, ouvia-se o tilintar dos cravos do relógio do crioulo.
‘é agora! Tou feito! É bandido e malfeitor. Afanador de pertences e sujeito currador. Afanou o relógio e, malandramente, o Simca também fora apartado de seu dono. Ou dona! Pobre coitada. Coitada mesmo, no sentido coitado da palavra’.
A esse lampejo, pensou ajoelhar-se a aguardar o golpe de misericórdia que, muito provavelmente, será proferido por uma saraivada de quarenta e cinco, que, de modo inexplicável sumiria do arsenal do corpo de policiais. ‘Malandro. Eu não me safo!’.
E teria mesmo prostrado-se em joelhos, não estivessem eles enretesados de medo. Então fecha os olhos para melhor avistar o filme de sua vida, que dizem ser tão ligeiro em sua transmissão. Força a cuca e se esforça para ser beneficiado da última fita, que não será em série. Tenta e um tchun... Retenta e... nada!
Enfim, abre as butucas e dá-se de testa com seu carrasco, que coloca-lhe a mão pesada no ombro: ‘viste bem?’
‘vi, sim, senhor. Eu pago. Pago e não digo nada a ninguém. Não abro. Boquinha de siri...’ e deslinda-lhe a falar, murmurar, lamentar e como que, sem nenhum colhão, reza pedindo por sua vida aos céus, ao crioulo e, embora não quisesse, até aos infernos, até que é interrompido por uma estalada tapona na face: ‘acalma, homem. Não foi nada. Vê bem! Foi só sua tinta que saiu. Eu não iria querer um para-choque cor de mel. Se me deve algo, deve-me um lenço.’
Com o golpe, regressa o infrator à realidade e percebe que não houve nada além do que imaginou. ‘que papelão. Pandorga!’ pensou, mas retrucou, tentando infringir-lhe, no tapa, algum sentido de culpa: 'me abalou um dente! você me abalou um dente, meu Deus do Céu!'
Ora, mal houve tempo para justificações e mal estar, o roxo chama o gnu a uma caninha das boas. "Brava!"
E vão, cada qual em seu carro para a sombra de uma tamarineira que tem a melhor meladinha da região.
Tornaram-se um, o Simca do Chambord do outro. Se ensinavam mutuamente amenidades, tais como carteado, anedotas, sambas e sambões, congadas e cantigas e canções, chanchadas e O Cruzeiro... Arriscaram juntos a aprendizagem de um instrumento musical qualquer. Própício não terem saído da caixinha de fósforos e dos assobios, pois assim, tinham a potência de um cacique em suas sambadas.
Passa o tempo e as bravadas. Nunca mais findou-se um dia sem que a tamarineira contasse com a presença do príncipe mouro e de seu bufão leitoso.
Parece incrível que, naquele mesmo ano do desastre automobilístico, tenham eles largado suas senhôras: ‘Chifre! Por que acham que ele tem essa cara de gnu?’, 'nem sua Desdêmona suportou essa cara de diabo-arerê!'. Sabe-se lá o motivo. De repente, queriam, apenas, gozar de suas solteirices da forma mais boêmia.
O fato é que eles, os dois juntos, eram fiéis a seu domicilio: a mesa em branco e preto que reservaram para aqueles dois, que sempre estava a batucar caixinha, prato e faca.
Riam-se deles, que tomavam parte na zombaria, e, mesmo a contragosto, a roda de samba sempre se iniciava com o côro a cantar um samba antigo de Noel Rosa. Às vezes, eles mesmo se antecipavam a cantarolar a melodia:

“o mulato é de fato
E sabe fazer frente a qualquer valente.
Mas não quer saber de fita
Nem com mulher bonita.’’