sábado, 25 de fevereiro de 2012

Mulato bamba



De todas as formas de alívio que pudesse sentir naquele momento em que, um incauto em fundos de garrafas, afunda-lhe o traseiro do carro sem misericórdia, o que de imediato surge-lhe à memória das papilas é o etéreo sabor de uma boa caninha.
"Das bravas!" Tanto quanto deveria ele se encontrar naquele momento do beijo grego entre o quadradinho cor de mel e o Chambord sangria.
‘ora porra!’ – exclamou um de cá, esforçado em fazer-se sereno durante o percalço.
Puxou um cigarro, abriu a porta projetando uma das pernas para fora, onde se avistava um excelente vinco no branco do linho: barra italiana. Coisa fina que se debruçava sobre o envernizado bicolor que calçava as meias vermelhas. Acendeu o tal pito e precipitou-se em direção ao prejudicador, que suava-se em bicas por baixo dos braços, encharcando as tergais que lhe deram a vestir logo pela manhã.
Parecia mais consternado com a sua atual torpeza que o mulato arroxeado, de quem lhe esculhambara a máquina: Bodejava, erguia e sacolejava as mãos para os ares, e então, deitava-as sobre a cabeça, na contemplação da tragédia automobilística que se lhe ocorrera não havia dois minutos. Pensava no que haveria de protelar em pagamento, para cobrir-lhe o prejuízo causado àquele bugre tão bem alinhado. ‘deve ser dado à macumba’ – pensou.
Olhou-lhe para a grossura dos punhos. Os mesmos que, seguramente e muito em breve e bem cerrados, afundar-lhe-iam as ventas e as têmporas, como ocorreu com os para-choques metálicos.
Chega o tal pilintra. Refuta-lhe a presença e parte direto à analise do dano. Coça o queixo, torce a pera. Debruça-se mais sobre o traseiro de sua propriedade e quebra o pescoço, o que lhe faz lançar um revesgueio ao infrator, que a essa altura dobra-se em cólicas, ao esperar o veredicto silencioso de seu algoz.
Este, que permenecera debruçado, agora apoia um dos pés nos restos de para-choques. Tira o lenço do bolço e abre-o. ‘Coisa fina’ - pensou o réu. Volta a dobrá-lo e põe-se a polir o grande estrago. ‘Eu pago!’, disse gaguejante o Outro coitado. Mas o Um pareceu não ouvir e, esmerado, colocava um tanto mais de força no polir do lenço.
Naquele movimento, ouvia-se o tilintar dos cravos do relógio do crioulo.
‘é agora! Tou feito! É bandido e malfeitor. Afanador de pertences e sujeito currador. Afanou o relógio e, malandramente, o Simca também fora apartado de seu dono. Ou dona! Pobre coitada. Coitada mesmo, no sentido coitado da palavra’.
A esse lampejo, pensou ajoelhar-se a aguardar o golpe de misericórdia que, muito provavelmente, será proferido por uma saraivada de quarenta e cinco, que, de modo inexplicável sumiria do arsenal do corpo de policiais. ‘Malandro. Eu não me safo!’.
E teria mesmo prostrado-se em joelhos, não estivessem eles enretesados de medo. Então fecha os olhos para melhor avistar o filme de sua vida, que dizem ser tão ligeiro em sua transmissão. Força a cuca e se esforça para ser beneficiado da última fita, que não será em série. Tenta e um tchun... Retenta e... nada!
Enfim, abre as butucas e dá-se de testa com seu carrasco, que coloca-lhe a mão pesada no ombro: ‘viste bem?’
‘vi, sim, senhor. Eu pago. Pago e não digo nada a ninguém. Não abro. Boquinha de siri...’ e deslinda-lhe a falar, murmurar, lamentar e como que, sem nenhum colhão, reza pedindo por sua vida aos céus, ao crioulo e, embora não quisesse, até aos infernos, até que é interrompido por uma estalada tapona na face: ‘acalma, homem. Não foi nada. Vê bem! Foi só sua tinta que saiu. Eu não iria querer um para-choque cor de mel. Se me deve algo, deve-me um lenço.’
Com o golpe, regressa o infrator à realidade e percebe que não houve nada além do que imaginou. ‘que papelão. Pandorga!’ pensou, mas retrucou, tentando infringir-lhe, no tapa, algum sentido de culpa: 'me abalou um dente! você me abalou um dente, meu Deus do Céu!'
Ora, mal houve tempo para justificações e mal estar, o roxo chama o gnu a uma caninha das boas. "Brava!"
E vão, cada qual em seu carro para a sombra de uma tamarineira que tem a melhor meladinha da região.
Tornaram-se um, o Simca do Chambord do outro. Se ensinavam mutuamente amenidades, tais como carteado, anedotas, sambas e sambões, congadas e cantigas e canções, chanchadas e O Cruzeiro... Arriscaram juntos a aprendizagem de um instrumento musical qualquer. Própício não terem saído da caixinha de fósforos e dos assobios, pois assim, tinham a potência de um cacique em suas sambadas.
Passa o tempo e as bravadas. Nunca mais findou-se um dia sem que a tamarineira contasse com a presença do príncipe mouro e de seu bufão leitoso.
Parece incrível que, naquele mesmo ano do desastre automobilístico, tenham eles largado suas senhôras: ‘Chifre! Por que acham que ele tem essa cara de gnu?’, 'nem sua Desdêmona suportou essa cara de diabo-arerê!'. Sabe-se lá o motivo. De repente, queriam, apenas, gozar de suas solteirices da forma mais boêmia.
O fato é que eles, os dois juntos, eram fiéis a seu domicilio: a mesa em branco e preto que reservaram para aqueles dois, que sempre estava a batucar caixinha, prato e faca.
Riam-se deles, que tomavam parte na zombaria, e, mesmo a contragosto, a roda de samba sempre se iniciava com o côro a cantar um samba antigo de Noel Rosa. Às vezes, eles mesmo se antecipavam a cantarolar a melodia:

“o mulato é de fato
E sabe fazer frente a qualquer valente.
Mas não quer saber de fita
Nem com mulher bonita.’’

2 comentários:

Anna K. Lacerda disse...

Que diliça! E se escondia da minha admiração sambística-poética-orgástica! Com você e suas palavras mágocas sou dada a qualquer macumba :)

orgasmaravalha-me disse...

vamos saravá na tamarineira, minhanna.